Escrita em 1947, pelo francês Albert Camus, "A Peste" é uma alegoria sobre como certos "males" se podem infiltrar na normalidade das nossas vidas em sociedade, sem ninguém dar por isso até que seja tarde de mais. Uma vez que a obra foi idealizada e escrita durante a Segunda Guerra Mundial, é impossível dissociá-la dos terrores do regime Nazi. Mas é também muito interessante fazer uma interpretação atual da metáfora. Essa interpretação pode ser feita pelas óbvias semelhanças entre a peste que assola os habitantes e trabalhadores da cidade industrial de Oran, na Argélia, e a pandemia mundial que vivemos em 2020, ou pelas ideologias políticas extremistas que por muito que pareçam erradicadas teimam em expressar-se e multiplicar-se como um vírus. No entanto, é também uma história de solidariedade e cooperação que questiona a natureza humana.
A história passa-se na década de 40, na cidade de Oran, que é atingida por um surto de peste bubónica. No início do livro somos introduzidos ao estilo de vida desta cidade industrial, sem grandes emoções ou conflitos, onde o trabalho e os negócios decorrem sem interrupções. Os seus habitantes vivem as suas vidas de uma forma pacífica, sem grandes reflexões ou dramas, existindo numa felicidade flutuante que não precisa de justificação. Até que um dia começam a aparecer ratos mortos pelas ruas da cidades e no interior dos edifícios.
M. Michel, porteiro do prédio onde mora o Dr. Bernard Rieux, a personagem principal que seguimos durante toda a narrativa, pensa que é uma partida de mau gosto e fica muito irritado. Mas à medida que os dias passam e mais ratos continuam a aparecer Rieux começa a suspeitar que pode-se tratar de algo mais.
Não é até que a primeira pessoa morra que o Dr. Rieux conclui juntamente com o seu colega Dr. Castel que estão perante um surto de peste. Mal se debatem com esta realidade, segue-se a decisão de declarar ou não publicamente a verdade.
Será mesmo peste? Quais serão as implicações se for? A partir do momento que é conhecida a verdade, e depois de muita hesitação por parte dos políticos, começam-se a tomar as devidas precauções. Inicialmente é tudo falado de ânimo leve, com piadas e pouca preocupação, mas à medida que o número de mortos aumenta o medo começa a aumentar e o Município fecha a cidade ao exterior, abre alas hospitalares dedicadas à doença e obriga os cidadãos ao recolher obrigatório. Vemos como os cidadãos são separados dos seus entes queridos quando é fechada a linha de comboios, e temem não os voltar a ver, face à incerteza da sobrevivência. A comunicação com exterior chega a ser tão reduzida que há alturas que até as cartas estão limitadas a "assuntos urgentes". A moral da população começa a desvanecer com o isolamento e depressão associados à doença. Alguns cidadãos tentam fugir e os recursos importados tornam-se escassos.
Assistimos ao desenrolar das relações daquela população em tempos tão difíceis e como se aguentam até a esperança voltar a reinar.
Deixo alguns excertos do livro:
(de uma versão em português do brasil)
"A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio."
"Durante semanas ficamos, então, reduzidos a recomeçar sempre a mesma carta, a copiar as mesmas informações e os mesmos apelos, se bem que, depois de um certo tempo, as palavras de sangue, ditadas pelo coração, perdiam o seu sentido. Então, nós as copiávamos maquinalmente, tentando, por meio dessas frases mortais, dar sinais de nossa vida difícil. E, finalmente, a esse monólogo estéril e teimoso, a essa conversa árida com uma parede, o apelo convencional do telegrama parecia-nos preferível.
Aliás, alguns dias depois, quando se tornou evidente que ninguém conseguiria sair da cidade, alguém teve a ideia de perguntar se o regresso dos que haviam partido antes da epidemia podia ser autorizado. Depois de alguns dias de reflexão, a prefeitura respondeu afirmativamente. Mas logo estabeleceu que os repatriados não poderiam, em caso algum, voltar a sair da cidade e que, se eram livres para vir, não o seriam para tornar a partir.
Algumas famílias, poucas aliás, não levaram a situação a sério e, sobrepondo a qualquer prudência o desejo de rever os parentes, convidaram estes últimos a aproveitar a ocasião. No entanto, os prisioneiros da peste logo compreenderam o perigo a que expunham os parentes e resignaram-se a sofrer a separação."
"Em suma, como todos nós que não morremos ainda da peste, ele sente efetivamente que sua vida e sua liberdade estão todos os dias às vésperas de ser destruídas. Mas, já que ele próprio viveu no terror, acha normal que os outros o conheçam por sua vez. Mais exatamente, o terror parece-lhe então menos pesado de suportar que se estivesse totalmente só. É nisso que ele está errado e que é mais difícil de compreender que outros. Mas, afinal, é por isso que merece mais que os outros que tentemos compreendê-lo.”
"Mas é assim. Os outros dizem: “É a peste, tivemos peste”. Por pouco, pediriam que os condecorassem. Mas que quer dizer isso, a peste? É a vida, nada mais."
"...decidiu, então, redigir esta narrativa, que termina aqui, para não ser daqueles que se calam, para depor a favor dessas vítimas da peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas e para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar."
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