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Carrie Mathison, a Trope da Mulher Louca e o Olhar Feminino


Recentemente visualizei a nova série The Beast in Me (2025), com uma atuação brilhante da atriz Claire Danes. Após os curtos episódios, que deixam vontade de entrar mais a fundo na personagem e na sua maneira de ver o mundo, nada fazia mais sentido do que revisitar a personagem mais carismática da atriz — a agente da CIA Carrie Mathison — e a série Homeland (2011-2020).

Ver Carrie após a conclusão de um doutoramento em representações femininas no cinema proporcionou-me uma perspetiva bastante diferente sobre a construção da personagem, revelando os elementos sociológicos e psicológicos que lhe conferem credibilidade e visceralidade. Carrie é uma underdog: uma agente exímia, com um instinto e uma capacidade de análise fora de série, mas que frequentemente se encontra nas margens do sistema — seja pela ferocidade com que defende a sua agência, seja pelas imposições das estruturas que a exploram e oprimem.

Ao longo da história, a figura da “mulher louca” tem sido usada como um dispositivo cultural para controlar, descredibilizar e silenciar as mulheres. Desde a histeria no século XIX até às representações contemporâneas, a alegada irracionalidade feminina serviu para justificar a exclusão das mulheres dos espaços de poder e da criação intelectual. Esta construção simbólica moldou não apenas a forma como a sociedade via as mulheres, mas também como elas passaram a ver-se a si próprias, interiorizando culpa, medo ou autocontenção. Embora as narrativas tenham evoluído, os vestígios deste arquétipo persistem, revelando o quanto a associação entre feminilidade e instabilidade continua enraizada na nossa cultura ocidental.

Nos filmes e séries, a trope da “mulher louca” tanto fascina como limita. Frequentemente apresentada como instável, imprevisível ou perigosa, esta figura serve para gerar tensão dramática, mas também para recentrar o olhar no masculino, que aparece como o polo racional ou “salvador”. Da femme fatale à protagonista marcada por doenças mentais usada apenas como recurso narrativo, a loucura feminina é muitas vezes romantizada ou reduzida a traços simplistas, impedindo leituras mais complexas sobre trauma, opressão social ou agência. Apesar de obras contemporâneas começarem a desconstruir este trope, a sua persistência mostra como o imaginário audiovisual continua a recorrer a este atalho dramático para representar tudo aquilo que, historicamente, foi considerado excessivo, indomável ou ameaçador na experiência feminina.

No caso de Carrie Mathison, a trope da “mulher louca” é mobilizada de forma particularmente ambígua: por um lado, a série utiliza a sua bipolaridade como motor narrativo, explorando episódios de instabilidade para criar suspense, justificar quedas dramáticas ou alimentar a desconfiança das figuras de autoridade — quase sempre masculinas — que a rodeiam. Por outro lado, essa mesma condição é também o que lhe permite ver aquilo que outros não veem, funcionando como uma espécie de “superpoder” que a coloca entre o génio e o abismo. Homeland, assim, simultaneamente reforça e desafia a trope: a série recorre à imagem da mulher emocionalmente descontrolada para intensificar o drama, mas evidencia também como o sistema utiliza essa etiqueta para descredibilizar e controlar uma mulher brilhante que ameaça a ordem estabelecida. Carrie encarna, portanto, a tensão entre a patologização histórica da mulher e a reivindicação contemporânea de complexidade, mostrando como a narrativa da “loucura” continua a moldar a perceção do público e a trajetória da personagem.

A relação de Carrie com Saul, a CIA e o patriarcado revela como a personagem é moldada, limitada e simultaneamente fortalecida por estruturas de poder profundamente masculinas. Saul funciona como a figura paternal que a guia, protege e disciplina — alguém que reconhece o seu talento excecional, mas que também a submete a um modelo de autoridade patriarcal. Ele valida e invalida Carrie conforme as necessidades da instituição, reforçando que a sua genialidade só é aceitável quando serve os interesses do Estado. A CIA, enquanto estrutura, manifesta o patriarcado de forma institucional: Carrie é constantemente vigiada, duvidada, regulada e punida, e a sua bipolaridade torna-se um instrumento de controlo — ativável sempre que a sua autonomia ameaça exceder os limites tolerados. Assim, a trajetória de Carrie expõe a violência subtil de um sistema que lucra com o seu brilhantismo, mas teme a sua independência, colocando-a num ciclo contínuo de validação e censura.

Carrie faz frente ao controlo patriarcal sobretudo através da insistência em colocar a sua própria leitura do mundo acima da autoridade masculina que a rodeia. Ao recusar o papel de agente obediente e emocionalmente “domesticada”, ela desafia hierarquias, insiste nas suas hipóteses mesmo sob risco de carreira, expõe a incompetência ou complacência dos seus superiores e transforma aquilo que o sistema vê como fraqueza — a bipolaridade — num recurso que alimenta a sua perceção, coragem e obstinação. A sua rebeldia não é caótica: é uma recusa contínua de aceitar que a sua autoridade deve ser menor só por ser mulher ou por não encaixar no molde emocional esperado. Ao fazer isso, Carrie abre fissuras no próprio sistema que a tenta controlar, mostrando que a genialidade feminina não precisa de pedir permissão para existir.

O female gaze em Carrie Mathison é particularmente marcante. A série permite-nos experienciar o mundo através dos seus olhos — o medo, a determinação, a vulnerabilidade e a perspicácia. Em vez de sermos apenas observadores de uma heroína, sentimos a tensão, a urgência e a subjetividade feminina na primeira pessoa. Esta perspectiva oferece uma forma de identificação rara em thrillers de espionagem: não é apenas o que Carrie faz que importa, mas como ela percebe, sente e reage, tornando a experiência emocional do espectador mais íntima e alinhada com o ponto de vista de uma mulher complexa.

Carrie Mathison é, portanto, um ícone do empoderamento feminino. A sua força nasce da complexidade, da vulnerabilidade e da persistência radical. Ao liderar operações, enfrentar riscos e desafiar estruturas masculinas, Carrie mostra que a competência e autoridade feminina podem coexistir com humanidade, emoção e resistência, oferecendo uma representação inspiradora e libertadora para as mulheres dentro e fora do ecrã.

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