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Philip K. Dick's Electric Dreams: os contos e os episódios da série televisiva



O meu primeiro contacto com Philip K. Dick foi recente. Como muitas vezes me acontece, foi através do cartaz da série televisiva que me despertou interesse. Mas não foi, no entanto, à série que me agarrei primeiro. 

O livro "Philip K. Dick: Sonhos Eléctricos" (2018) foi publicado pela editora Relógio D'água após o lançamento da série televisiva homónima (2017), pela a Amazon Prime, e reúne os 10 contos do autor que deram origem aos seus episódios. A cada conto é feita uma introdução pelos escritores de cada episódio, explicando a adaptação e o impacto que cada peça tem para cada um. 

A escrita de Philip K. Dick atira-nos sem medo para os seus universos, o que depois visualmente funciona muito bem. O autor assume que estamos inteirados do contexto e logo começa a elaborar. Uma vez que os temas que Dick trata fazem parte da própria essência do que é ser humano, isso acaba por não importar muito. Apesar da estranheza que é sentida face a seres extraterrestres e a realidades alternativas, o âmago de cada história consegue ser muito familiar.

A série, em geral, consegue preservar essa sensação. Cada episódio, apesar de todos os artifícios, foca-se principalmente nos seus personagens e nas suas relações, e consegue apresentar ambientes visuais totalmente distintos entre si. 

Os contos não são apresentados na mesma ordem que os episódios. Sendo que por ordem temos: Peça de Exposição; O Passageiro; O Planeta Impossível; O Enforcado; Conversa de Vendedor; O Pai-Coisa; O Fabricante de Capuzes; Foster, Estás Morto; Humano É e Autofab, enquanto os episódios são, por ordem: The Hoodmaker; Impossible Planet; The Commuter; Crazy Diamond; Real Life; Human Is; Father Thing; Autofac; Safe and Sound e Kill All Others.

Apesar de ter achado umas adaptações mais bem conseguidas do que outras, sendo que por vezes pouco sobrou do imaginário original (veja-se Crazy Diamond, inspirado em Conversa de Vendedor), cada uma suscita uma análise interessante, porém focar-me-ei aqui nos contos e episódios que mais me interessam. 


O Fabricante de Capuzes/The Hoodmaker

O conto do Fabricante de Capuzes situa-nos numa sociedade sob a tutela do regime opressivo "União Livre", que usa telepatas para ler as mentes de qualquer oponente político ou civil e vive sobre o moto "só não se deixa ler quem tem algo a esconder". A sua escrita data 1955 mas nem por isso deixa de ser totalmente atual. O conto explora questões de privacidade com as quais nos deparamos hoje, mais que nunca. Em vez de telepatas criados por um qualquer desastre químico, temos a internet e empresas de recolha e tráfico de dados pessoais, mas as questões inerentes ao processo são muito parecidas. Tem cada ser humano direito a preservar os seus pensamentos mais íntimos? Ou parte-se do pressuposto de que quem é inocente não terá problemas com a invasão de privacidade? Para que é que, entidades poderosas com as suas próprias agências, usam esse conhecimento?

No episódio a que o conto dá forma, existem algumas diferenças essenciais relativamente ao escrito original. No conto, existe uma pressão enorme por parte de toda a sociedade para manter uma transparência abusiva, sendo a própria justiça do povo que tenta parar Franklin e o seu capuz protetor. No episódio, marchas e protestos dos civis contra os telepatas insurgem-se com mensagens como "don't steal our minds". Em ambos temos a figura do fabricante de capuzes, mas enquanto no primeiro é um espécie de terrorista, no segundo é uma espécie de herói. 


Além disso, o conto mostra-nos a perspectiva de Walter Franklin, nomeado para governo, a quem é misteriosamente enviado um capuz capaz de bloquear os telepatas. Franklin tenta escapar às teias da polícia para saber do que se trata aquele objeto, enquanto é perseguido. O episódio segue a perspetiva do polícia Agente Ross (Richard Madden), e da telepata Honor (Holliday Grainger), enquanto tentam encontrar o fabricante e criam uma relação intíma, focando-se nas peculiaridades dessa relação.

A adaptação foi feita por Matthew Graham (Life on Mars; Ashes to Ashes) que afirma  que "a adaptação dos nosso heróis é algo de profundamente pessoal", o que o levou a uma recriação mais subjetiva, muito de encontro com a sua primeira percepção do conto, quando criança.

Foster, Estás Morto/ Safe and Sound

O conto " Foster,  Estás Morto" relata a vida de Foster,  um jovem rapaz que se sente excluído de uma sociedade assombrada pelo medo.  O pai de Foster é um homem às antigas,  tem uma fabrica de móveis num mercado que já quase não pede pelos seus serviços,  tornando-o numa raridade vintage.  De todas as famílias se espera que tenham um abrigo no espaço exterior das suas habitações, para o caso de desastre terem onde se proteger.  O pai de Foster não vai na balela de propaganda apocalíptica que visa manter o consumo de bens de proteção bem vivo.  Por isso,  não paga as taxas para os abrigos públicos e não tem um abrigo em casa,  argumentanto que não há provas reais de perigo há anos e anos.  No entanto,  Foster, confuso e débil,  vive numa ansiedade social nociva que o mantém constantemente com medo de um ataque e de não ter proteção,  por isso passa muito do seu tempo ora a verificar abrigos públicos,  ora em montras de lojas que fornecem tais bens. 

A adaptação do conto tem muitas diferenças. Foi feita por Travis Sentel, também conhecido pela co-produção televisiva em "The Man in the High Castle", também de PKD, e por Kalen Egan.  O episódio foca-se em Foster (aqui uma adolescente que vai viver para a capital durante o período de um ano, interpretada por Annalise Basso) e na sua mãe (Maura Tierney),  representante eleita para defender os direitos dos habitantes das "bolhas",  comunidades que querem viver com um nível maior de liberdade e sem tanto controlo.  Além do mais,  o objeto que personifica a necessidade de segurança não é o abrigo,  mas um Dex,  uma espécie de pulseira eletrónica que grava todos os dados do utilizador,  desde os sinais hormonais e vitais,  localização e muitos outros.  Foster chega à capital com a sua mãe sem dar grande importância à segurança,  sendo a sua família representado como um bocado hippies.  Porém,  a necessidade de se relacionar na escola e de se sentir integrada fazem a sua ansiedade crescer e deixar para trás muitos dos valores que trazia consigo. 


Se ambas a histórias têm um core em comum, é o da pressão social e necessidade de pertença, muito mais evidentes em idades de risco,  como a adolescência, e conseguida através da manipulação emocional e do consumo. O que ao início parece um conto do velho do restelo, em que os mais velhos contrariam o que os mais novos querem fazer,  revela-se depois uma história sobre valores, identidade e convicção. 

O Pai Coisa/Father Thing

Já o "Pai Coisa" é uma história mais bizarra. Tudo o que Charles menos espera é deparar-se com o cenário que se depara. À hora de jantar vai chamar o seu pai à garagem. Mas em vez de um pai, encontra dois, em diálogo. Charles não sabe o que se está a passar e fica desde logo imensamente perturbado. Volta para a mesa onde se encontra a mãe e queixa-se "Há outro". A mão não percebe nada do que ele diz... e entretanto o seu pai, ou algo idêntico, entra pela porta da sala de estar e senta-se a jantar. 

Charles sabe que há algo de errado, e até a sua mãe o pressente. O seu pai está estranho, a reagir de formas que não lhe são naturais, então Charles vai à garagem investigar. Quando chega e começa a remexer no entulho lá esquecido, descobre nada mais nada menos do que uma pele descartada. A pele do seu verdadeiro pai.

A adaptação do conto para a televisão foi feita por Michael Dinner e prima por todo o contexto que oferece. É capaz de ser a adaptação mais fiel ao conto original, porém tem umas atualizações que lhe conferem valor.

No conto só seguimos a perspectiva de Charles, enquanto no episódio o que se passa na vida privada desta família, acontece também noutras. Logo no início do episódio, somos apresentados a uma relação calorosa entre Charles (Jack Gore) e o seu pai (Greg Kinnear), alicerçada no basebol. Enquanto estão a acampar num terreno selvagens, dá-se uma espécie de chuva de meteoritos, que fica largamente sem explicação. Na segunda feira seguinte metade da turma de Charles não comparece às aulas, e os estranhos relatos começam. 


São imensos os acontecimentos em comum entre o conto e o episódio, sendo que a espinha dorsal da história foi preservada.  

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